25.1.11

Ligeti fecha 2010.

 


Em 1992, Gyorgy Ligeti (1923-2006) dava uma entrevista para um documentário de Michel Follin fazendo uma retrospectiva das suas composições. A propósito das primeiras obras, expressava a admiração pelo compositor franco-flamengo Johannes Ockeghem (1420-1497). Nessa mesma entrevista filmada, entre os comentários do compositor húngaro, podia-se ouvir Kyrie da missa prolationum de Ockeghem. De seguida, fez-se ouvir Lontano e Atmospheres de Ligeti. Estavam assim justapostos dois pontos temporalmente extremados da música ocidental. Por um lado, a música do final da idade média ou renascimento (como se queira chamar) e, por outro, música de vanguarda de pleno séc. XX. Ligeti não parecia relembrar Ockeghem apenas pelo seu interesse histórico. Antes, evocava o mestre da flandres como uma fonte com profundas ligações à sua própria música. O que mais apreciava, dizia-nos Ligeti, era o efeito de anulação do tempo que a música de Ockeghem, em especial na missa prolationum, produzia. “Tudo parece mudar mas, na verdade, tudo é estático”. Afirmar tal quando se fala de música, arte que decorre do tempo, onde o acontecimento sucessivo é o objecto principal de deleite será, no mínimo, controverso. Talvez nesta passagem de Borges esteja uma pista para se entender o que nos queria dizer Ligeti:“... os Homens sentiram-se perdidos no tempo e no espaço. No tempo porque se o futuro e o passado são infinitos, não haverá realmente um quando, no espaço porque se todo o ser é equidistante do infinito e do infinitésimo também não haverá um onde. Ninguém está em nenhum dia e nenhum lugar, ninguém sabe o tamanho da sua cara.” (Outras Inquisições). A anulação do tempo não advém, como é óbvio, de qualquer paragem por parte dos músicos ou por qualquer anulação da sua actividade. Como Borges indirectamente nos diz, é no preciso momento em que nos sentimos inundados pela actividade e mapeamento temporal que este se torna oculto, anula-se. A referência precedente denuncia e renuncia a posterior. A ideia aqui expressa por Borges poderá ser a origem da proximidade dos dois compositores. Em ambos, o mínimo condensa-se ainda mais, e o máximo supera-se em algo maior. A construção dá-se por algo que é simultaneamente divisível e igualmente multiplicável, sem perder o seu carácter essencial.

Na missa prolationum um móbil, um ponto inicial, um tema é definido. A partir deste não haverá mais nenhum acontecimento. O distender, o prolongar (e daí o nome Prolationum) assume o mostrar de todas as qualidades e possibilidades do ponto inicial. Este ponto ou tema inicial é combinado consigo mesmo em contraponto com cânones de prolação. Este tipo de cânones (repetição do mesmo tema simultaneamente mas desfasado no tempo) tem a particularidade de multiplicar ou dividir as várias vozes em tempos de duração diferente. Assim, toda a música nos é apresentada em contraponto. Uma polifonia de uma complexidade tal que se torna quase impossível, por vezes, desvendar as características iniciais do tema. E é nesse momento, em que não é possível perceber nem o início nem o fim da frase (o tamanho da nossa cara de que Borges nos fala), que entramos no tempo da suspensão. Nada mais é que a aparência do mesmo sobre mesmo, nada mais é que “um ser contingente”, ou seja um tema que não o é por si, como nos dizia Aquino na sua Súmula Teológica. “Deus é o princípio e o fim de todas as coisas ”e, por isso, “nada é eficiente de si mesmo” além de Deus. Assim é na missa Prolationum. Esta missa é a perfeita representação deste princípio pois decorre toda ela de um acto puro, de um ponto inicial, mostrado nas suas mais variadas facetas mas nunca adulterado, como o Deus na visão de Aquino. Tudo começa e acabada a partir e para o ponto inicial.

O contraponto presente na obra de Ockeghem difere de outros bem conhecidos, como o de J.S. Bach. Enquanto que a polifonia da música de Bach tem um efeito potente sobre a memória, fazendo com que ouvinte memorize o tema inicial e o identifique várias vezes ao longo da música como acontece nas suas Fugas, em Ockeghem, o tema inicial, embora sempre presente, é ocultado por si mesmo na maior parte da obra. O processo gerador de contraponto por cânones de prolação, pela sua complexidade origina este efeito polifónico. A verdade está sempre escondida sobre ela própria. Não há intenção de a mostrar de forma cristalina. Prefere, antes, nunca adulterar o móbil inicial, ao contrário de Bach que o trabalha habilmente.

Mas será Ligeti, em parte, a explicar a música de Ockeghem quando explica a sua: “tanto Atmosphères como Lontano [1967] têm uma densa estrutura canónica. Mas, na realidade, não é possível ouvir a polifonia ou mesmo o cânone. Ouvimos antes uma espécie de textura impenetrável, algo como uma teia de intrincados cruzamentos. Mantive as linhas melódicas no processo de composição, são governadas por leis tão restritas como as que Palestrina usou – mas as regras da polifonia são as criadas por mim. A estrutura polifónica na verdade não aparece, não é possível ouvi-la; fica escondida num submerso mundo microscópico… eu chamo-lhe micropolifonia… Assim, não é possível ouvir a minha música assim como ela aparece notada em papel… O processo de composição é como deixar que um cristal se forme numa solução supersaturada. Potencialmente, o cristal está sempre na solução mas só se torna visível no momento da cristalização. Do mesmo modo, pode-se dizer que há um estado de polifonia supersaturada, com todas as características do cristal, mas é impossível identificá-lo. O meu objectivo é capturar este processo, fixar a solução supersaturada no exacto momento antes da cristalização… É esta fixação de um estado que leva também a dizer o seguinte: “não há eventos, só estados; não há contornos ou formas, há antes um espaço musical inabitado.” (1978 entrevistado por Péter Várnai). Ligeti reduz o espaço que haveria para a melodia e polifonia a micro eventos que no todo da peça são de todo imperceptíveis sendo, no entanto, no seu conjunto, o corpo de tudo. As pequenas partes são muito mais complexas que o todo e, tal como na música de Ockegham a existência de eventos é ilusória.

Ao criarem a música estática, a música do infinito e do infinitésimo, estes autores libertam o tempo do seu fado habitual, o encadear dos eventos. Ligeti chega mesmo, numa peça chamada Poema sinfónico para 100 metrónomos, a ridicularizar o valor temporal, ou, melhor, glorificá-lo. Mede o tempo e marca o espaço sonoro com 100 metrónomos diferentes, cada um com um intervalo próprio. Nela o tempo assume tantas caras que, sendo impossível escolher uma, só se pode dizer que provavelmente não está lá. A verdade é intemporal e está sempre presente, mas nunca é tempo verbal porque sempre foi. E estas obras podem ser a representação de um mundo assim. Nelas a verdade oculta-se a si própria na ilusão de um mundo de eventos. Mas, o que as torna verdadeiras, como o mundo que sempre foi, é que, da mais brutal e incansável complexidade de onde nos chegam, surgem-nos sempre belas.

by Nuno Pedrosa

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